Uma raça muito especial. Para que não hajam dúvidas...
Os jagozes do meu tempo bebiam água de Santa Marta, comiam peixe da lota a semana toda e só alteravam o "meniú" ao Domingo para se lambuzarem de arroz com frango. Muito mais arroz que frango, e bem desfiadinho para dar para todos. A sobremesa iam apanhar à árvore do quintal do lado. E eram saudáveis e felizes. ...Agora encomendam "junk food" e frequentam os centros de saúde para tratarem da "azia".
Os jagozes do meu tempo brincavam na rua em segurança, só importunados pelo chinelo da velhota quando os ia buscar já fora de horas. Jogavam ao pião, ao berlinde "às três bajocas", e até tinham máfia dos "abafadores". Eram campeões olímpicos a brincar à "apanhada" e a fugir do sr. guarda quando partiam o vidro da janela da vizinha com uma bolada. Eram elegantes, por força das circunstâncias, tinham genica para dar e vender e... eram felizes. ...Agora brincam em casa, são balofos por defeito e sofrem de miopia precoce porque passam a vida no telemóvel a "praticar" nas redes sociais e a exercitar os "neuróniums" a "scrollar" no comando do LCD, para consumir todo o tipo de telelixo.Os jagozes do meu tempo faziam as próprias "viaturas" para as corridas de rua que consistiam numa cana com uma cortiça das redes de pesca a fazer de volante, e "direcção assistida" feita com um caniço mais fino com mais duas cortiças a simular as rodas, encaixadas na ponta da "suspensão", que era a cana ou "chassis". Passeavam à "gancheta" feita de um aro de metal que fora antes o suporte da bacia do "lavatório" de quarto da avó e que fazia de roda grande, guiada pelo "bicheiro" do avô ir aos polvos na Malhadinha, já retorcido e adaptado para bem "enganchar", mesmo enganchando depois umas berduadas em casa. E eram felizes. ...Hoje usam carros a sério e de "série", aceleram nas ruas a 80 onde só se pode andar a 30, passam sinais vermelhos como quem descasca tremoços, e estacionam em cima dos passeios, como se fossem "garagens particulares". Os jagozes do meu tempo tinham sempre lugar para estacionar as bicicletas que os pais lhes ofereciam pelo Natal ou que gamavam no bairro rival, e não precisavam de usar correntes com cadeado. Se desapareciam, bastava fazer uma rusga aos quintais mais próximos e lá estava ela; com as rodas já trocadas e o quadro repintado, mas com os mesmos travões e o mesmo selim. E quem não tinha dinheiro para comprar bicicleta nova ou em segunda mão, fazia uma trotineta caseira, com tecnologia avançada de impulso "coice de mula" ou construía um carrinho de rolamentos todo GTX e com travões ATTS (Até os Ténis Terem Sola). E eram felizes. ...Agoram andam de trotinete eléctrica toda XPTO com um pezinho à frente e outro atrás como as meninas do ballet, circulam na via pública e até nas estradas como se conduzissem uma Harley Davidson, atravessam as passadeiras dos peões sem desmontar e chegam a casa estafados de tanto apertarem os glúteos do inhoff, na tentativa de corrigir o desalinhamento da coluna dorsal.Os jagozes do meu tempo iam ao muro das "Ribas" para espreitar a praia dos pescadores e ver o tractor do ti Carlos puxar para terra os barcos que chegavam do mar ou empurrar para a água os que iam para a faina. Aos Domingos iam à missa e ao futebol para depois se reunirem todos no largo do "Jogo da Bola" para meterem a sua "rede social" em dia. Até tinham câmeras de vigilância em todas as ruas; as vizinhas à janela. E todos se cumprimentavam com um "então 'nha belha", que é um termo carinhoso por cá ... Agora ouve-se mais o "hi old boy" dos forasteiros. Os novos habitantes.Por falar em surf, os jagozes do meu tempo já praticavam "surf" mesmo só com o "body" como os golfinhos ou seja, só com o corpo, sem prancha nem nada. Era uma especialidade só deles. Depois os banhistas trouxeram os colchões de encher e passou-se a praticar as "carreirinhas". Por cima das rochas e tudo... Mais tarde tornaram-se mais sofisticados e os colchões ficaram mais pequenos, "em bico", para melhores performances e já com turbo; barbatanas de borracha. ...Agora, bem, vocês sabem; só falta terem asas e motor a jacto.
Os jagozes do meu tempo iam no verão engatar as inglesas para a porta do hotel (acabavam quase sempre engatados por elas) com ar de galãs de cinema e no inverno iam trabalhar para as obras. Mas sempre com "style". Patrulhavam o bairro e mantinham o respeito nas ruas. Adiantavam-se sempre à polícia quando era preciso aplicar a "Lei". Na passagem do ano deixavam as árvores do "Jogo da Bola" enfeitadas de caixotes de lixo e garrafas de gás pendurados como se fossem bolas numa árvore de Natal e iam para o adro da igreja nas festas e romarias roubar os bolos das bancadas das saloias durante o foguetório com os caniços dos foguetes equipados com um corte na ponta, tipo arpão. Nunca andavam com mais de vinte e cinco tostões no bolso e sempre trocados. ...Agora vão para as pastelarias tomar o "breakfast" com o dedo mindinho esticado, cheios de fleuma e deixam sempre metade por consumir para demonstrar como são "chic", que se a palavra não vier do francês, vem de certeza de "chiqueirês".
Para os jagozes do meu tempo o que vai restando da Ericeira de então, hoje tão moderna, tão "global", tão descaracterizada? A capela de S. Sebastião? A Fonte do Cabo? O miradouro da "Sala das visitas"? A silhueta actual do velho Hotel de Turismo? Algumas fachadas típicas deixadas intactas por misericórdia arquitectónica? As velhas Furnas? Talvez o eterno vai-vem das ondas daquele mar tão azul... que vai perdendo o brilho e a cor.
Talvez um dia destes já não lhe chamem mais, Ericeira. Só, Surfeira...
Mas a verdadeira, velha e típica Ericeira estará sempre guardada na memória e no coração dos jagozes do meu tempo.
Até todos, aos poucos, nos irmos embora.